quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O príncipe violinista

por Eder Ferreira

     Das melodias que ouvira, nenhuma tinha tanta paixão e melancolia quanto aquela. Talvez até já tivesse escutado algo tão belo, mas não conseguia se lembrar de algum momento de tanta beleza. O som do violino parecia que vinha do céu, preenchendo o ar e fazendo com que qualquer um que passasse ao entardecer, pela Rua da Alvorada, ficasse extasiado de tanta doçura e tristeza misturadas. A música vinha de uma casa, já velha, sem muito brilho, quase que por desabar. Flora se encantava sempre que voltava da escola. Chegava a parar por alguns minutos, só para poder escutar aquela música divina. Indagava-se sobre quem poderia tocar tão maravilhosamente um violino, instrumento que ela tentara aprender, mas sem muito sucesso. A vergonha não lhe permitia bater palmas e perguntar quem era o instrumentista que a encantava todo fim de tarde. É claro que, em sua cabecinha juvenil, de menina com seus quatorze anos, montava a idéia de o músico ser um rapaz com seus vinte e poucos anos, lindo de morrer e que, sem muitos recursos financeiros para fazer aulas de violino, aprendera a tocar sozinho, e ficava ali, todos os dias, no mesmo horário, ensaiando. Pensara até em um nome para ele: Marcos. Alto, olhos verdes, olhar tímido. Um príncipe, não só em beleza como também em talento. Numa tarde, dessas meio chuvosas, quando veio a estiagem de alguns minutos, quase suficiente para Flora ir embora, pois esquecera de levar o guarda-chuva, passava ela pela Rua da Alvorada quando viu um senhor, de idade avançada, saindo pelo portão enferrujado daquela casa velha, onde morava seu violinista dos sonhos. Eufórica, pensou logo em se tratar do pai ou avô do rapaz, o tal Marcos, que ela nomeara. Tomou coragem e foi até lá, perguntar ao velho sobre quem tocava aquelas músicas tão belamente. O velho lhe disse que era ele mesmo quem tocava o violino. O mundo de Flora desabou naquele instante. Não havia Marcos algum, e seu príncipe violinista não passava de um senhor quase careca, de voz rouca e sem charme algum. Meio sem querer ela deixou escapar um “Marcos”, que o velho logo escutou. Perguntou à moça o que dissera, e ela, com olhar de curiosidade, repetiu o nome. O velho disse se tratar do nome de seu neto, que morrera a pouco mais de um ano, em um acidente de carro, quando ia para um festival de violino. O velho despediu-se então da jovem, e seguiu pela calçada, até virar a esquina. Flora ficou lá, parada, no meio da calçada, quando recomeçou a chover finamente. “Então o Marcos existiu”, pensou ela, com um leve sorriso no rosto. Vagarosamente começou a andar em direção à sua casa. A chuva logo engrossou, mas ela não acelerou o passo. Foi lentamente embora, relembrando uma das músicas que sempre ouvira o velho tocar nos fins de tarde. O tom melancólico das canções que ouvia agora fazia sentido. Quem sabe aquele velho não tocava as músicas tristes pensando no neto Marcos, que havia morrido. Flora começou a chorar e, misturada às suas lágrimas, a chuva escorria pelo seu rosto. A música não saia de sua cabeça, e nem a lembrança de seu príncipe violinista, que ela só conhecera por intermédio do som de um violino, tocado por um velho músico desconhecido.


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Conto publicado originalmente no livro "Uma Verdadeira Prosa - Contos & Minicontos", do escritor Eder Ferreira (para adquirir o livro clique aqui)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Dois mundos

por Eder Ferreira


Enquanto uns cospem
Outros engolem seco
Um gosto amargo
Uma lastima caída

Recolhem em si
A esperança perdida
De toda sorte contida
No azar sorridente

E nesta terra ardente
Deste planeta hábil
Mora a incerteza
Da fé não amada

Tantos que cantam
Que sofrem em pranto
Numa festa sem fim
Num riso aparente

Outros que oram
De pecado em pecado
Num sonho alado
Devaneio, senil

Neste mundo duplo
Sentidos em êxtase
De um lado o sagrado
De outro o profano

Entre a vida capital
E a morte divina
Resta só a dúvida
Tão suave e mortal

Será que no fim
Cada palavra e ação
Farão a diferença
Entre os dois mundos?

Enquanto uns rezam
Outros tantos fornicam
Ambos sem rumo
Na certeza do risco

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Minha amada desconhecida – Poema II


por Eder Ferreira


Outra vez eu disse adeus
A alguém que nunca tive
Novamente olhei para mim
E, tão perto do fim
Senti tua falta
Tão inexistente
Quanto tua presença
Sozinho, percebi a ausência
De tua pessoa
Vi teu olhar
No vazio do ar
Beijei tua boca
Ilusórios sentidos
Meu toque, seu toque
Na penumbra da falta
De um abraço, de um carinho
De uma mulher
Que nunca foi minha
Outra vez eu disse adeus
E mais uma vez
Não houve resposta
Só o silencio
De tua longínqua
E eterna presença