segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Os limites da mentira

por Eder Ferreira


     Quem nunca mentiu? Você mesmo, caro leitor, já contou alguma mentira? Olha lá em! Seja sincero! Não adianta. Não há ser humano na face da terra que não tenha dito ao menos algumas palavrinhas em falso testemunho. Parece trivial falar sobre a mentira, mas não é. Faltar com a verdade pode até ser crime, dependendo das intenções do candidato a Pinóquio. É até pecado, ocupando a 8ª colocação nos famosos e antiquíssimos 10 Mandamentos. 
     Mas, afinal, o que é a mentira? Ou melhor, quais os limites da mentira? Mentir pode ser tanto esconder a verdade como alterá-la. Mas, não para por ai. Um ator, encenando uma peça de teatro, por exemplo, não estaria mentindo, fingindo ser quem ele não é? Lógico que os espectadores sabem que tudo não passa de uma encenação. Só que, se olharmos pelo lado pratico da coisa, é uma forma de mentira sim. O próprio escritor (e ai, entro eu nessa história) é um mentiroso de carteirinha. Por mais que muitos escrevam sobre coisas reais, a maioria prefere inventar histórias fictícias, frutos da imaginação.
     E é ai que está o ponto, a imaginação. Esse é o tal limite da mentira. Mentir nada mais é que usar a imaginação para ludibriar a verdade. Inventar artifícios intelectuais para fazer com que outras pessoas acreditem naquilo que esta sendo mostrado. Mas, tais limites podem, as vezes, romperem as barreiras do bom sendo. Quando, por exemplo, um ator de novela apanha na rua, por interpretar um papel de vilão. Sua mentira, quer dizer, sua encenação, é tão boa que muitas pessoas passam a acreditar que ele realmente é mal.
     Na verdade, toda arte não passa de uma grande mentira. Uma forma inventada pela humanidade para nos esquecermos de vez em quando da realidade amarga da vida. Uma maneira de transformarmos o mundo em um lugar melhor. Ou pior, depende da mentira a ser contada, e por quanto tempo ela durará. 
     Dizem que mentira tem perna curta. Isso me faz lembrar dos bobos da corte, aqueles palhaços, geralmente anões, que divertiam os nobres europeus na idade média. Pois, muitos artistas atuais descendem desses palhacinhos medievais. Só que, nos dias de hoje, os artistas, raras algumas exceções, tem pernas longas até demais. Assim como os mentirosos. 

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O dia da caça

por Eder Ferreira


     Já estava quase na hora, e aquele maldito binóculo ainda não havia aparecido. Já tinha procurado por quase todo o apartamento, e nada. Parecia que pernas tinham surgido, e com elas havia escapulido pelos corredores do prédio. Mais uma vez, Carlos foi procurá-lo em seu quarto. A cada remexida em seu guarda roupa, dava uma espiada no relógio. Ela nunca se atrasava. Sempre na mesma hora, aquela deusa despia-se quase totalmente, e ficava próxima a sua janela, com as cortinas escancaradas. Não seria naquele dia que Carlos perderia o show. Mas, sem o binóculo, ficaria muito difícil. O desespero já estava chegando a limites insuportáveis. Era um vício, uma tara sem igual. Ao passar pela sala, viu ao longe quando as cortinas do quarto dela se abriram. “Maldito binóculo!”, gritava ele. Até que se lembrou que havia passado metade da noite anterior na internet. “O quarto do computador, ainda não olhei lá!”, disse ele, em voz alta. Correu para o quarto. Ao chegar, fez uma varredura com os olhos bem arregalados, mas nada. Enfim, olhou debaixo da cadeira, e lá estava o maldito. Bem na hora. Pegou o binóculo, correu para a janela da sala, fechou as cortinas, ajoelhou-se, enfiou o binóculo numa frestinha, mirou sua visão para a janela da deusa, e a viu, do jeito que imaginava. Há dias a esperava trajando uma lingerie vermelha. Seu desejo foi atendido. A calcinha de rendinha combinava com o sutiã meia taça. Um espetáculo. Além de ter um belíssimo rosto que lhe perturbava o sono há semanas, seu corpo era de uma perfeição inimaginável. Por vezes, achava que ela estava olhando em direção à sua janela. Até poderia, só não conseguiria vê-lo, pois a distância entre os dois prédios era grande o bastante para impedir uma observação minuciosa a olho nu. Quando seu êxtase parecia que lhe levaria a um enfarto, sua deusa resolveu fechar as cortinas. Lamentou-se com uma série de palavrões. Hoje não era seu dia. Havia quase morrido de aflição por não encontrar o binóculo e, para completar, sua deusa tinha resolvido encurtar seu espetáculo diário. Ao perceber que a luz do quarto havia se apagado levantou-se, abriu as cortinas e jogou o binóculo no sofá. A mescla de euforia, por mais uma vez poder contemplar sua deusa, com a raiva pelos acontecimentos indesejados lhe deu um calor descomunal. Arrancou a camisa, e ficou caminhando de um lado para o outro, ao lado da janela. Vez ou outra olhava para onde sua deusa deveria estar. Seus pensamentos já tão desorientados só conseguiam planejar uma possível ida até o apartamento daquela mulher que tanto tirava seu sono. Não seria difícil. Os prédios, apesar de afastados um do outro, eram gêmeos. Ambos os apartamentos ficavam no oitavo andar. Acharia com muita facilidade. “Mas, o que dizer a ela?”, perguntava-se. “Por favor, poderia me arrumar um pouco de açúcar? Não, não! Por que eu iria até lá pra pedir açúcar? Como sou estúpido!”. Sua caminhada tortuosa ao lado da janela já começava a lhe cansar. A fome foi lhe apertando. Resolveu que estava na hora de relaxar. Foi até a cozinha, preparar algo para comer. Um lanche cairia bem. Depois de algum tempo, um belo sanduíche o aguardava em cima da mesa. Quando ia para dar uma bocada no sanduba sua campainha tocou. Sob uma chuva de palavrões, dirigiu-se até a porta. Ao abrí-la, tamanho foi seu susto em ver quem estava ali. Era sua deusa. Com uma saia jeans apertadinha e uma blusinha preta idem, de onde se podia ver a alça do sutiã vermelho que usava enquanto ele a espiava. De queixo caído, sentiu sua mandíbula desabar no chão quando, com uma voz doce e ao mesmo tempo provocante, sua deusa lhe perguntou: “Por favor, poderia me arrumar um pouco de açúcar?”

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Conto publicado originalmente no livro "Uma Verdadeira Prosa - Contos & Minicontos", do escritor Eder Ferreira (para adquirir o livro clique aqui), e finalista do "Prêmio Cidade de Porto Seguro de Contos 2009", tendo sido publicado, também, na antologia "Festa Surpresa - Vol. II".

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Insensível




 por Eder Ferreira, com co-autoria de A. Zhoras*

sinta-me
se tiver coragem
sinta o sopro gélido da minha ausência
e a lava do meu ódio em erupção

sinta-me
em seus pesadelos
e se souber delirar sem ópio

sinta-me
em minhas crises de pavor
ante a verdade de sua partida
sinta-me
sem mentira

sinta-me
neste pulsar estraçalhado
de um coração que
você degustou com seus
talheres de indiferença refinada
naquele jantar regado a vinho
e torpor

sinta-me
neste sangrar sem sentido
nesta dor que não me abandona
nestes soluços que me molestam a alma
nesta ponta de espada que me invade
lenta e impiedosa
mas sinta
apenas
se tiver coragem

sinta-me
neste não
neste sim
neste chão que se abre
nesta cova cruel
neste fim

sinta-me
se tiver coragem
pois sou eu o remédio
contra esse seu medo
(secreto)
da solidão

*Pseudônimo do escritor tomazinense Leandro Muniz (http://azhoras.weebly.com/index.html)

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Deusa




por Eder Ferreira

Tua palavra me é redoma
Que prende minha vontade
Aniquila a liberdade
Aprisiona meus pensamentos
Teus lábios se fazem
Como sentenças inquisitórias
Leis insatisfatórias
Regras nada naturais
Teus anseios me devoram
Consomem meu prazer
Tiram todo o meu querer
Fazem de mim um serviçal
Tua alma me desfigura
Teus desejos me alucinam
Tua mente me enlouquece
Assim, sou prisioneiro
Em teu universo metafórico
Em tua presença que me leva
Tentando sempre ser teu deus
Sendo tu minha eterna Minerva