Das melodias que ouvira, nenhuma
tinha tanta paixão e melancolia quanto aquela. Talvez até já tivesse escutado
algo tão belo, mas não conseguia se lembrar de algum momento de tanta beleza. O
som do violino parecia que vinha do céu, preenchendo o ar e fazendo com que
qualquer um que passasse ao entardecer, pela Rua da Alvorada, ficasse extasiado
de tanta doçura e tristeza misturadas. A música vinha de uma casa, já velha,
sem muito brilho, quase que por desabar. Flora se encantava sempre que voltava
da escola. Chegava a parar por alguns minutos, só para poder escutar aquela
música divina. Indagava-se sobre quem poderia tocar tão maravilhosamente um
violino, instrumento que ela tentara aprender, mas sem muito sucesso. A
vergonha não lhe permitia bater palmas e perguntar quem era o instrumentista
que a encantava todo fim de tarde. É claro que, em sua cabecinha juvenil, de
menina com seus quatorze anos, montava a idéia de o músico ser um rapaz com
seus vinte e poucos anos, lindo de morrer e que, sem muitos recursos
financeiros para fazer aulas de violino, aprendera a tocar sozinho, e ficava
ali, todos os dias, no mesmo horário, ensaiando. Pensara até em um nome para
ele: Marcos. Alto, olhos verdes, olhar tímido. Um príncipe, não só em beleza como
também em talento. Numa
tarde, dessas meio chuvosas, quando veio a estiagem de alguns minutos, quase
suficiente para Flora ir embora, pois esquecera de levar o guarda-chuva, passava
ela pela Rua da Alvorada quando viu um senhor, de idade avançada, saindo pelo
portão enferrujado daquela casa velha, onde morava seu violinista dos sonhos.
Eufórica, pensou logo em se tratar do pai ou avô do rapaz, o tal Marcos, que
ela nomeara. Tomou coragem e foi até lá, perguntar ao velho sobre quem tocava
aquelas músicas tão belamente. O velho lhe disse que era ele mesmo quem tocava
o violino. O mundo de Flora desabou naquele instante. Não havia Marcos algum, e
seu príncipe violinista não passava de um senhor quase careca, de voz rouca e
sem charme algum. Meio sem querer ela deixou escapar um “Marcos”, que o velho
logo escutou. Perguntou à moça o que dissera, e ela, com olhar de curiosidade,
repetiu o nome. O velho disse se tratar do nome de seu neto, que morrera a
pouco mais de um ano, em um acidente de carro, quando ia para um festival de
violino. O velho despediu-se então da jovem, e seguiu pela calçada, até virar a
esquina. Flora ficou lá, parada, no meio da calçada, quando recomeçou a chover
finamente. “Então o Marcos existiu”, pensou ela, com um leve sorriso no rosto.
Vagarosamente começou a andar em direção à sua casa. A chuva logo engrossou,
mas ela não acelerou o passo. Foi lentamente embora, relembrando uma das
músicas que sempre ouvira o velho tocar nos fins de tarde. O tom melancólico
das canções que ouvia agora fazia sentido. Quem sabe aquele velho não tocava as
músicas tristes pensando no neto Marcos, que havia morrido. Flora começou a
chorar e, misturada às suas lágrimas, a chuva escorria pelo seu rosto. A música
não saia de sua cabeça, e nem a lembrança de seu príncipe violinista, que ela
só conhecera por intermédio do som de um violino, tocado por um velho músico
desconhecido.
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Conto publicado originalmente no livro
"Uma Verdadeira Prosa - Contos & Minicontos", do escritor Eder
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