Já estava quase na hora, e aquele
maldito binóculo ainda não havia aparecido. Já tinha procurado por quase todo o
apartamento, e nada. Parecia que pernas tinham surgido, e com elas havia
escapulido pelos corredores do prédio. Mais uma vez, Carlos foi procurá-lo em
seu quarto. A cada remexida em seu guarda roupa, dava uma espiada no relógio.
Ela nunca se atrasava. Sempre na mesma hora, aquela deusa despia-se quase
totalmente, e ficava próxima a sua janela, com as cortinas escancaradas. Não seria
naquele dia que Carlos perderia o show. Mas, sem o binóculo, ficaria muito
difícil. O desespero já estava chegando a limites insuportáveis. Era um vício,
uma tara sem igual. Ao passar pela sala, viu ao longe quando as cortinas do
quarto dela se abriram. “Maldito binóculo!”, gritava ele. Até que se lembrou que
havia passado metade da noite anterior na internet. “O quarto do computador,
ainda não olhei lá!”, disse ele, em voz alta. Correu para o quarto. Ao chegar,
fez uma varredura com os olhos bem arregalados, mas nada. Enfim, olhou debaixo
da cadeira, e lá estava o maldito. Bem na hora. Pegou o binóculo, correu para a
janela da sala, fechou as cortinas, ajoelhou-se, enfiou o binóculo numa
frestinha, mirou sua visão para a janela da deusa, e a viu, do jeito que
imaginava. Há dias a esperava trajando uma lingerie vermelha. Seu desejo foi
atendido. A calcinha de rendinha combinava com o sutiã meia taça. Um
espetáculo. Além de ter um belíssimo rosto que lhe perturbava o sono há
semanas, seu corpo era de uma perfeição inimaginável. Por vezes, achava que ela
estava olhando em direção à sua janela. Até poderia, só não conseguiria vê-lo,
pois a distância entre os dois prédios era grande o bastante para impedir uma
observação minuciosa a olho nu. Quando seu êxtase parecia que lhe levaria a um
enfarto, sua deusa resolveu fechar as cortinas. Lamentou-se com uma série de
palavrões. Hoje não era seu dia. Havia quase morrido de aflição por não
encontrar o binóculo e, para completar, sua deusa tinha resolvido encurtar seu
espetáculo diário. Ao perceber que a luz do quarto havia se apagado
levantou-se, abriu as cortinas e jogou o binóculo no sofá. A mescla de euforia,
por mais uma vez poder contemplar sua deusa, com a raiva pelos acontecimentos
indesejados lhe deu um calor descomunal. Arrancou a camisa, e ficou caminhando
de um lado para o outro, ao lado da janela. Vez ou outra olhava para onde sua
deusa deveria estar. Seus pensamentos já tão desorientados só conseguiam
planejar uma possível ida até o apartamento daquela mulher que tanto tirava seu
sono. Não seria difícil. Os prédios, apesar de afastados um do outro, eram
gêmeos. Ambos os apartamentos ficavam no oitavo andar. Acharia com muita facilidade.
“Mas, o que dizer a ela?”, perguntava-se. “Por favor, poderia me arrumar um
pouco de açúcar? Não, não! Por que eu iria até lá pra pedir açúcar? Como sou
estúpido!”. Sua caminhada tortuosa ao lado da janela já começava a lhe cansar.
A fome foi lhe apertando. Resolveu que estava na hora de relaxar. Foi até a cozinha,
preparar algo para comer. Um lanche cairia bem. Depois de algum tempo, um belo
sanduíche o aguardava em cima da mesa. Quando ia para dar uma bocada no sanduba
sua campainha tocou. Sob uma chuva de palavrões, dirigiu-se até a porta. Ao
abrí-la, tamanho foi seu susto em ver quem estava ali. Era sua deusa. Com uma saia
jeans apertadinha e uma blusinha preta idem, de onde se podia ver a alça do
sutiã vermelho que usava enquanto ele a espiava. De queixo caído, sentiu sua mandíbula
desabar no chão quando, com uma voz doce e ao mesmo tempo provocante, sua deusa
lhe perguntou: “Por favor, poderia me arrumar um pouco de açúcar?”
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Conto publicado originalmente no livro "Uma Verdadeira Prosa - Contos & Minicontos", do escritor Eder Ferreira (para adquirir o livro clique aqui), e finalista do "Prêmio Cidade de Porto Seguro de Contos 2009", tendo sido publicado, também, na antologia "Festa Surpresa - Vol. II".
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